Cultura Meme e Pós-Verdade

O projeto de pesquisa Cultura MEME e Política Viral na sociedade da pós-verdade, desenvolvido pelo pesquisador e professor da UFSB e estudante bolsista de Iniciação Científica Bruno Savi, consiste em investigar os processos de criação, usos e distribuição de memes nas redes sociais no Brasil, e como seu uso massivo, aliado a outras formas de distribuição de conteúdo nas redes sociais (como os chamados Stories e Reels), estimulam a velocidade, superficialidade, repetição e até mesmo o vício ao fluxo constante de informação, gerando impactos profundos na construção de valores politicamente orientados, na assimilação da cultura e na saúde mental dos usuários.

Em 1976, o biólogo evolutivo e etólogo Richard Dawkins introduziu, em seu livro “O Gene Egoísta”, o termo “meme” para se tratar do equivalente cultural do gene — transmissor de ideias e culturas, se propagando, replicando e mutando — defendendo, por pensamento darwinista, que o ser humano é uma máquina que se modifica e adapta-se para propagação de memes, assim como é de genes. A internet ainda era um protótipo do que hoje se tornou. Ela ainda não era o berço da propagação do meme como conhecemos nos dias atuais. Da mesma forma, Friedrich Nietzsche, em 1873, no ensaio “Sobre a Verdade e Mentiras em um Sentido Não-Moral”, ao evocar os primeiros pensamentos acerca da pós- verdade, somente avistara a ponta do iceberg no qual a nossa sociedade pós-moderna viria a se chocar.

Como Susan Blackmore exemplificou em seu artigo “O Poder dos Memes” (2000), memes são histórias, sons, hábitos, habilidades, invenções e maneiras de fazer coisas que nós copiamos de pessoa para pessoa através da imitação; ou seja, é uma forma de informação inerente ao ser humano, porém com a Internet e seu poder de conexão e viralização os memes foram potencializados e hoje são a chave para entendermos processos sociais e políticos.

Nessa pesquisa iremos tratar do meme digital, que, de acordo com An Xiao Mina, é um conteúdo digital compartilhado e remixado de pessoa para pessoa ao longo do tempo dentro de uma comunidade. Essa estrutura ligada ao anonimato e à velocidade da transmissão de informações faz com que “a cultura do remix digital empenhe um papel central e traiçoeiro no abrigo de racistas, xenofóbicos, misóginos, homofóbicos, transfóbicos, de ideologias classistas e capacitistas, incluindo esforços estratégicos para recrutar e direcionar os jovens online” (SOBANDE, 2019, p. 158).

Somada à propagação de discursos de ódio, vimos também, com o advento da rede telemática (Internet) a facilitação da circulação de notícias falsas (as chamadas “fake news”), pois “agora já não se pode apontar, e menos ainda responsabilizar, precisamente a fonte, uma vez que a verdade ficcionalizada adentra a lógica de geração de sentidos ainda mais espontânea e introjetada.” (RENA, 2012, p. 10). Essas táticas juntas à utilização da mitopoese e de discursos (des)legitimadores, segundo Andrew S. Ross e Damian J. Rivers, são os principais recursos usados para criação de um meme político, haja visto os escândalos emergidos desta esfera ao redor do globo (e inclusive no Brasil), pois, como atualmente “fragmentos de discursos estão deslocados, nomes próprios são expropriados e reapropriados por desconhecidos que se fazem passar por outros, fragmentos formais e técnicos são reutilizados (reterritorializados) de formas não previstas por seu autor” (RENA, 2012b. p. 354). Partidos e governos podem utilizar-se de memes para propagar discursos ilegais, por meio de métodos de propaganda política ilegais.

Mas o problema dos memes nas sociedades contemporâneas não se restringe às questões de ordem política tour court. Relacionadas a essa questão, está a tendência, diagnosticada por diversas pesquisas no campo da saúde, de uma surto, em diversos países, ricos ou pobres, por procuras aos sistemas de saúde de pacientes com distúrbios psicológicos de naturezas diversas. Mark Fisher aponta, em seu “Realismo Capitalista, de 2009, que é preciso

“reformular o problema crescente do estresse e da angústia nas sociedades capitalistas. Em vez de atribuir aos indivíduos a responsabilidade de lidar com seus problemas psicológicos, aceitando a ampla privatização do estresse que aconteceu nos últimos trinta anos, precisamos perguntar: quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade especialmente grande de jovens, estejam doentes?” (2020, p. 37).

Nossa hipótese é a de que há uma relação mais ou menos direta entre o impacto das redes sociais no cotidiano social, e os diferentes problemas de distúrbios psicológicos dos quais Fisher nos fala. O conceito de meme, nesse caso, nos parece central, uma vez é possível perceber hoje, como muitos estudiosos têm apontado, uma relação de vício entre o consumo e compartilhamento de memes. Esta problemática se torna, nessa pesquisa, um segundo âmbito de análise que, suspeitamos, se relaciona com as questões da política-viral supracitada, mas também com os crescentes problemas de saúde social apontados por Fisher.

Por fim, interessa-nos nessa pesquisa compreender as relações entre os processos criativos envolvidos na composição visual e/ou linguísticas dos memes, e o seu mecanismo de funcionamento, tanto no que concerne a problemática da política-viral e seus impactos nas sociedades democráticas, quanto no que concerne à problemática da saúde social.

REFERÊNCIAS

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BLACKMORE, Susan. “The Power of memes”. Scientific American. Outubro de 2000. P. 64-73.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.

FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

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GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2010.

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LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

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RENA, Alemar. “O autor como nó: literatura, multidão e singularidades na era das rede”. In: Que autor sou eu? Deslocamentos, experiências, fronteiras. Adelia Maria Miglievich Ribeiro, Fabíola Padilha, Leni Ribeiro Leite, orgs. (2012b).

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

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